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A inteligência artificial no Judiciário brasileiro

Já tem um bom tempo que os robôs deixaram de ser uma excentricidade longínqua pertencente apenas aos filmes de ficção científica e se tornaram realidade presente em vivências sociais cotidianas. O Google, Netflix, Spotify, alguns carros e aviões são apenas exemplos dos instrumentos virtuais e materiais que se utilizam da Inteligência Artificial (IA) na atualidade para aperfeiçoar as suas dinâmicas.

A despeito de as IAs serem tecnologias existentes há décadas, foi apenas nos últimos anos que elas ocuparam lugar de destaque no direito brasileiro. Hoje, escritórios de advocacia buscam esse recurso para dinamizar procedimentos internos, a Administração Pública se serve dessa inovação para impulsionar as suas atuações e o Judiciário a insere em sua rotina com o objetivo de otimizar a prestação jurisdicional.

Com essa proeminência das inteligências artificiais, o Estado brasileiro tem se ocupado de deliberar sobre as suas possíveis molduras normativas. Nesse sentido, alguns projetos de lei para as IAs já tramitam no legislativo federal.

O desenvolvimento das estruturas de hardware e de software e o incremento do funcionamento das IAs foram peças fundamentais no processo de sua “juridicização”.  Mais avançadas e mais precisas em suas respostas, as IAs cresceram, se diversificaram e tiveram a sua presença demandada em espaços tradicionalmente estranhos a elas. O Judiciário é apenas um dentre tantos outros setores que a buscaram.

É muito comum ouvir, como justificativa para o incremento da presença das IAs junto à jurisdição, que essas tecnologias realizam em poucos segundos o que os seres humanos levariam dias e até mesmo meses para executar. Baixo custo, alta velocidade e sincronia com a eficiência são os elementos que hoje compõem o tripé fundamental argumentativo de justificativa dessa nova realidade.

Mas afinal, o que é uma inteligência artificial?

No Brasil, as inteligências artificiais não possuem conceito unânime, dogmático e universal. Sequer existe dispositivo legal que as defina ou delimite com precisão. A ideia de inteligência artificial para fins jurídicos é, em tal perspectiva, narrativa em disputa e o seu processo de construção está acontecendo exatamente agora.

Dessa maneira, considerando as expectativas jurisdicionais e o uso das IAs que já é feito pelo Judiciário, elas serão aqui definidas como instrumentos tecnológicos peculiares de tomada de decisão, estruturados a partir de base de dados e de aprendizado de máquina e que demandam a existência de hardwaresoftware, processamento de linguagem natural e de algoritmo para que funcionem.

Dentro dessa necessidade de compreensão das IAs decisórias, é importante mencionar as diferenças levantadas entre as IAs fortes e as IAs fracas. Sim, esses termos parecem estranhos, mas é exatamente assim que a epistemologia dessa seara categoriza as IAs conforme a sua autonomia e potencial de semelhança com o cérebro humano.

As IAs fortes são aquelas capazes de se aproximar bastante dos processos cognitivos dos seres humanos de forma a possuírem “autonomia” de ação. As IAs fracas, por sua vez, são mais limitadas e apenas se focam em realizar procedimentos específicos a partir dos dados que recebem ou dos aprendizados oriundos de suas próprias operações.

Consideradas essas definições, é possível concluir que o Brasil ainda não possui IAs decisórias fortes, repletas de autoconsciência e efetivamente capazes de replicarem o que se passa no cérebro dos seres humanos. Aquilo que existe em termos de inteligência artificial funcionando no direito e na jurisdição mais se aproxima da ideia de IA fraca.

Independente de simularem bem ou mal a plenitude do funcionamento cerebral humano, as IAs despertam elogios e olhares de admiração, assim como ressalvas e temores.

No caso do direito, os debates críticos envolvem precipuamente as pertinências das IAs com a jurisdição democrática, as suas compatibilidades com a Constituição, os enviesamentos, a possível violação às ideias de publicidade e acesso à informação, as opacidades algorítmicas, os preconceitos de gênero e raça e a responsabilidade pelos danos efetivamente gerados pelas IAs.

Faz sentido refletir sobre os limites éticos e constitucionais das IAs decisórias ou o que importa mesmo é o incremento funcional que elas representam? A inserção da tecnologia nas atividades humanas é um fim em si ou um caminho de instrumentalização de ganhos qualitativos para as dinâmicas sociais? É justamente dentro desse tipo de indagação que se insere a abordagem garantista do direito digital aqui proposta!

Convém ressaltar que o termo garantismo digital não está disseminado na dogmática jurídica brasileira. A inserção dessa específica expressão entre aspas no Google, por exemplo, não oferece resultados de busca diretamente ligados a ela. Os resultados remetem ao direito criminal e à democracia em sua generalidade, mas sem qualquer ligação com o universo do direito digital.

O garantismo digital aqui apresentado se inspira na construção intelectual de Luigi Ferrajoli[1] amplamente conhecida na seara do direito penal e processual penal, porém ainda carente de análises expansivas frequentes em outros ramos do direito. Esse termo polissêmico, como bem ensina o seu teórico italiano, não foi desenvolvido para uso exclusivo do direito criminal. Na verdade, o garantismo se liga ao constitucionalismo democrático em sua completude e pode ser analisado mediante inúmeras perspectivas jurídicas. Reduzir o garantismo ao direito penal e processual penal é um equívoco epistemológico![2]

A partir da ótica da teoria geral do garantismo, é preciso se preocupar com os aspectos formais e materiais do direito, com o hiato existente entre o ser e o dever ser; é necessário estruturar um modelo normativo de referência (uma espécie de tipo ideal) e prezar pela máxima respeitabilidade a esse referencial; é fundamental, também, moldar um discurso e uma prática jurídica compatíveis com a sistematicidade e essência dos valores protegidos pelo direito vigente.

Falar de garantismo especificamente digital implica considerar que a teoria geral garantista precisa ser aplicada ao direito digital; cogitar a existência desse garantismo digital significa ressaltar a necessidade de serem construídas garantias epistemológicas e jurídicas, tanto materiais como processuais, para o direito digital como um todo.

O garantismo digital se desdobra no dever de respeito à Constituição quando da criação de normativas sobre inovações tecnológicas digitais, na obrigação de respeito ao sistema jurídico quando do uso dos recursos tecnológicos pelo Estado e pelos particulares. Esse garantismo também se volta para a necessidade de haver rigor técnico na interpretação do direito digital e para a importância de ser estruturada uma racionalidade cognitiva ontológica para essa seara. É imprescindível, nesse viés garantista, que seja provida uma ontologia coerente para o direito digital e que seja capaz de limitar ou “impedir” a predominância de pensamentos tópicos desconexos.

No exato caso das IAs decisórias, há de se dizer que a necessidade de olhar atento para o garantismo digital se evidencia de maneira muito marcante, pois a jurisdição é um espaço oficial de exercício do poder constitucionalmente instituído. As IAs decisórias, ao agirem, lidam com direitos fundamentais diversos, não apenas com garantias processuais, mas também com direitos materiais.

O garantismo digital é a especificação do garantismo que busca proteger direitos subjetivos potencial e efetivamente afetados pelo incremento tecnológico. Se o direito se une à tecnologia de maneira a possibilitar novas formas de exercício do poder, pensar sobre o garantismo digital e estruturar as bases sólidas de sua teoria são tarefas urgentes! Vamos falar sobre garantismo digital?


[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

[2] TRINDADE, André Karam. Raízes do garantismo e o pensamento de Luigi Ferrajoli. Revista Consultor Jurídico, 8 de junho de 2013. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-jun-08/diario-classe-raizes-garantismo-pensamento-luigi-ferrajoli#author>. Acesso no dia 25 de junho de 2020.


Fonte do Artigo: JOTA
Escrito por MARIANA DE SIQUEIRA
Doutora em Direito. Professora Adjunta da UFRN